Acórdão n.º 155/16 de 18 de setembro
- Diploma: Acórdão n.º 155/16 de 18 de setembro
- Entidade Legisladora: Tribunal Supremo
- Publicação: Diário da República Iª Série n.º 142 de 18 de Setembro de 2018 (Pág. 4591)
Assunto
Acorda em conferência, em nome do povo, no Plenário do Tribunal Supremo, sobre a uniformização da Jurisprudência em consequência de uma contradição existente entre os acórdãos dos Processos n.º 7789 e 14795, e que as normas do Decreto n.º 231/79, de 26 de Julho, referentes aos crimes e contravenções cometidos no exercício da condução automóvel estão tacitamente revogadas pelas normas sobre a matéria constante do Decreto n.º 5/08, de 29 de Setembro, que aprova o Código de Estrada.
Conteúdo do Diploma
Processo n.º 155/16No Plenário do Tribunal Supremo, os Juízes acordam em Conferência, em nome do Povo:
- I. Relatório Osvaldo Luacuti Estêvão, Juiz de Direito, Presidente do Tribunal Provincial do Lobito, veio solicitar a este Tribunal Pleno a uniformização da jurisprudência em consequência de uma contradição existente entre os acórdãos dos Processos n.os 7789 e 14795, ambos proferidos pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, tendo alegando em resumo, o seguinte:
- a)- Que no dia 9 de Outubro de 2015, sob a sua presidência, realizou-se no Município do Lobito a III reunião Ordinária dos Órgãos que Intervêm na Administração da Justiça na Província de Benguela e durante a realização deste evento os participantes analisaram e debateram exaustivamente o problema da vigência do Decreto n.º 231/79, de 16 Julho, que disciplina as infracções criminais cometidas no exercício da condução automóvel, face aos vários constrangimentos que esta matéria tem provocado aos operadores de justiça local;
- b)- Que o problema que aqui agora é levantado à vossa douta apreciação e consideração é o da existência de dois Acórdãos contraditórios produzidos pelo Tribunal Supremo no domínio da mesma questão de direito e também pelo Tribunal Constitucional;
- c)- Que aos 3 de Dezembro de 2009, em resposta a um recurso interposto pelo Magistrado do Ministério Público junto da 2.ª Secção Criminal do Tribunal Provincial do Lobito, o Tribunal Supremo produziu o Acórdão n.º 7789, no qual, em síntese, concluiu que «o Código de Estrada não revogou expressamente o Decreto n.º 231/79. Pelo contrário, manteve-o em vigor»;
- d)- Que recentemente, aos 24 de Março de 2015, o Tribunal Supremo conheceu o recurso interposto pelo Magistrado do Ministério Público junto da 1.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial da Huíla e produziu o Acórdão n.º 14795, no qual em síntese, concluiu que «o Decreto n.º 231/79 está tacitamente revogado pela CRA e pelo Decreto-Lei n.º 5/08, de 29 de Setembro»;
- e)- Que ainda relativamente à mesma questão ut supra, aos 24 de Junho de 2014, o Tribunal Constitucional conheceu um recurso ordinário de inconstitucionalidade interposto pelo Magistrado do Ministério Público junto da 1.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Benguela e concluiu que «as normas do Decreto n.º 231/79 referentes aos crimes e contravenções cometidos no exercício da condução automóvel estão tacitamente revogadas pelas normas sobre a matéria constante no Decreto-Lei n.º 5/08, de 29 de Setembro». Terminou pedindo que, face a profusão de soluções opostas sobre a mesma questão, fundamentalmente de direito, é nosso entendimento, assaz modesto, que, em harmonia com o disposto no artigo 763.º do Código de Processo Civil impõe-se que o Plenário do Venerando Tribunal Supremo produza, ex officio, um assento, com força obrigatória geral, nos termos do artigo 2.º do Código Civil. Os autos foram remetidos para este Tribunal e distribuídos na sessão de 13 de Janeiro de 2016 (fls.11 e 12). Remetidos os autos para vista do Ministério Público, (fls.13 e 13/v) este emitiu o seguinte parecer: «Apesar da contradição em alguns acórdãos da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, gradualmente foi-se consolidando o sentido jurisprudencial que entende que o Decreto n.º 231/79, de 16 de Julho, está revogado, especialmente os artigos que contrariam o Código de Estrada. Este entendimento alicerça-se no seguinte fundamento (entre outros): O artigo 2.º do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 5/08, de 29 de Setembro, revoga toda a legislação que contraria o disposto no Código de Estrada; Sendo o Código de Estrada posterior ao Decreto n.º 231/79, de 16 de Julho, aplica-se o princípio «lex posteriori derrogat lex priori» ou seja, lei posterior revoga a anterior; Decorre do artigo 6.º do Código Penal que ao infractor deve ser aplicada a lei mais favorável; No plano da hierarquia dos Diplomas Legais estamos perante um Decreto e um Decreto-Lei, o segundo prevalece sobre o primeiro. Aceito o entendimento, não devem os Tribunais aplicar o referido Decreto, aplicando-se para os casos de homicídios apenas para danos culposos decorrentes do acidente de viação, as pertinentes disposições do Código Penal (Lei Geral). Para o efeito impõem-se a aprovação de um assento, nos termos do artigo 2.º do Código Civil.»Correram os vistos legais. Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
- II. Fundamento do Recurso Nos termos do artigo 52.º n.º 2 da Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro (Lei sobre o Ajustamento das Leis Processuais Penal e Civil) «o recurso para o Plenário do Tribunal Supremo será interposto, processado e julgado como o recurso idêntico em matéria cível, tendo a decisão os mesmos efeitos». Deste modo, os preceitos aplicáveis à interposição, processamento e julgamento desta espécie de recurso são os artigos 763.º e seguintes do Código Processo Civil (com as necessárias adaptações). Ora dispõe o artigo 763.º o seguinte: «1. Se no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão fundamental de direito, assentem sobre soluções opostas, pode recorrer-se para o tribunal pleno do acórdão proferido em último lugar».
- Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação sempre que, durante o intervalo da sua publicação, não tenha sido introduzida qualquer modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida. Sem prejuízo do acima vertido, o n.º 3 do artigo 766.º do C.P.C, estabelece que «O acórdão que reconheça a existência de oposição não impede que o tribunal pleno, ao apreciar o recurso, decida em sentido contrário» ou seja, desta norma infere-se que, a decisão da Câmara Criminal não vincula o Tribunal Pleno e de Recurso.
- III. Questão Prévia (Da legitimidade activa do Juiz Presidente do Tribunal Provincial do Lobito) Antes de analisarmos a questão sub judice, importa levantar a questão de se saber se o ora Recorrente tem ou não legitimidade activa para interpor o presente recurso para o Tribunal Pleno com vista a uniformização da jurisprudência. Vejamos: Ao abrigo do artigo 48.º da Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro, está plasmado que o recurso para o Tribunal Pleno, seguirá os termos do recurso regulado pelos artigos 763.º e seguintes do C.P.C., porém, este artigo nada refere sobre a legitimidade. A legitimidade é o pressuposto processual através do qual a lei selecciona os sujeitos de direito admitidos a participar em cada processo levado a tribunal (Carlos Feijó in «A justiça Administrativa Angolana», pág. 93) Ora, não fazendo o artigo 763.º do C.P.C qualquer referência à legitimidade e sabendo que a legitimidade enquanto um pressuposto processual vem regulado no artigo 26.º e seguintes, do mesmo código logo, é conclusivo que é nos termos deste artigo que deve ser analisada a questão relativa a legitimidade do ora Recorrente. De acordo com o artigo 26.º, n.º 1, 1.ª parte, do C.P.C, o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar. A 1.ª parte do n.º 2 deste artigo estabelece que o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção. E, finalmente, o n.º 3 do mesmo artigo estabelece que na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante, para efeitos de legitimidade, os sujeitos da relação material contravertida. Ora diante das disposições citadas, não obstante não ser o Juiz parte processual, ainda assim não nos parece existir qualquer dúvida em relação ao interesse directo do ora Recorrente em demandar, porquanto resulta claro da 1.ª parte do n.º 2 deste artigo 26.º que o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção. Ademais, com a resolução desta oposição (entenda-se procedência da acção) e atendendo a matéria de direito em discussão, haverá certamente uma utilidade resultante deste facto pois, tal vai garantir o respeito pelos princípios da certeza e segurança jurídica bem assim, a igualdade de todos os cidadãos perante a lei. Outrossim, o Juiz enquanto operador do direito e principal aplicador da lei terá sempre interesse directo em aplicar leis ou decisões em harmonia com o espírito do sistema e da jurisprudência dominante. Em face do exposto, deve ser reconhecida a legitimidade activa ao Recorrente para interpor o presente recurso.
- IV. Questão a ApreciarEmerge como questão a apreciar no presente recurso, saber: Em face das soluções opostas entre a decisão proferida pela Câmara Criminal do Tribunal Supremo no Acórdão n.º 7789 e o Acórdão n.º 14795, qual das decisões deve prevalecer.
- V. FundamentaçãoCom interesse para a decisão do presente recurso, consideram-se provados os seguintes factos:
- A 3 de Dezembro de 2009, em resposta a um recurso interposto pelo Magistrado do Ministério Público junto da 1.ª Secção Criminal do Tribunal Provincial do Lobito, o Tribunal Supremo produziu o Acórdão n.º 7789, no qual, em síntese, concluiu que «o Código de Estrada não revogou expressamente o Decreto n.º 231/79. Pelo contrário, manteve-o em vigor» (doc. de fls. 3-5).
- A 24 de Março de 2015, a mesma Câmara proferiu outra decisão, em que conheceu o recurso interposto pelo Magistrado do Ministério Público junto da 1.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial da Huíla e produziu o Acórdão n.º 14795, no qual em síntese, concluiu que «o Decreto n.º 231/79 está tacitamente revogado pela CRA e pelo Decreto-Lei n.º 5/08, de 29 de Setembro» (doc. de fls. 6-8).
- A 22 de Dezembro de 2015, o Meritíssimo Juiz Presidente do Tribunal Provincial do Lobito solicitou ao Plenário do Tribunal Supremo a fixação da jurisprudência, em consequência da contradição entre duas decisões proferidas pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo (doc.de fls. 1-2).
- VI. Apreciando Ficou acima devidamente delimitada que a questão a apreciar no presente recurso, consubstancia-se em saber qual a posição a ser adoptada diante de soluções opostas proferidas pela Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que a 3 de Dezembro de 2009, produziu o Acórdão n.º 7789, no qual, em síntese, concluiu que «o Código de Estrada não revogou expressamente o Decreto n.º 231/79. Pelo contrário, manteve-o em vigor». E a decisão da mesma Instância, que a 24 de Março de 2015, produziu o Acórdão n.º 14795, no qual em síntese, concluiu que «o Decreto n.º 231/79 está tacitamente revogado pela CRA e pelo Decreto-Lei n.º 5/08, de 29 de Setembro». Antes de mais, importa analisar, pois, se há ou não soluções opostas nos termos do artigo 763.º do C.P.C, que possam alicerçar o fundamento do presente recurso para o tribunal pleno. De acordo com o «n.º 1 do artigo mencionado, os fundamentos para a interposição do recurso em apreço são os seguintes:
- i. Que no domínio da mesma legislação, o Tribunal Supremo profira dois acórdãos;
- ii. Que os mesmos sejam relativamente à mesma questão fundamental de direito;
- iii. Que os acórdãos assentem sobre soluções opostas. Estão ou não, nos dois acórdãos em questão, reunidos os pressupostos supra referidos? Vejamos:
- i. Quanto a necessidade de que no domínio da mesma legislação, o Tribunal Supremo proferir dois acórdãos. Convém salientar, aliás, como já referido, que à luz do n.º 2 deste artigo, os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação sempre que, durante o intervalo da sua publicação, não tenha sido introduzida qualquer modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida. Ora, da análise dos autos, bem assim da factualidade assente como provada no pontos 1 e 2, não é difícil constatar que, quer o acórdão do Processo n.º 7789, quer o do Processo n.º 14795, ambos proferidos pela Câmara Criminal sujeitaram-se a mesma legislação designadamente:
- Código Penal, Decreto n.º 231/79, de 26 de Julho (Sobre a Disciplina do Trânsito Automóvel) e Decreto-Lei n.º 5/08, de 29 de Setembro (Código de Estrada). Assim sendo, podemos concluir que se encontra preenchido este requisito.
- ii. Quanto a necessidade de os mesmos (acórdãos) serem relativamente à mesma questão fundamental de direito. Pese embora no primeiro Processo n.º 7789, ter-se constatado que o Réu foi indiciado pela prática de um crime de condução ilegal e no crime de desobediência e no Processo n.º 14795, o Réu ter sido indiciado pelos crimes de homicídio por culpa grave, danos com culpa grave e ofensas corporais com culpa grave, o certo é que, em ambos os processos (acórdãos) encontramos a mesma questão fundamental de direito, designadamente, saber se às normas do Decreto n.º 231/79 referentes aos crimes e contravenções cometidos no exercício da condução automóvel estão ou não tacitamente revogadas pelas normas sobre a matéria constante no Decreto n.º 5/08, de 29 de Setembro. Assim, dúvidas não existem que os mesmos (acórdãos) são relativamente à mesma questão fundamental de direito e como tal, também aqui consideramos estar preenchido este requisito.
- iii. Quanto a necessidade de os acórdãos assentarem sobre soluções opostas. No tocante a este requisito, também não há qualquer dúvida e que, aliás já referimos supra, sobre a questão da vigência ou não do Decreto n.º 231/79, de 26 de Julho, por um lado, no Acórdão n.º 7789, a 1.ª Secção da Câmara Criminal em sessão de 3 de Dezembro de 2009, entendeu que o Código de Estrada vigente o manteve em vigor. Por outro lado, no Acórdão n.º 14795, a mesma Secção da Câmara Criminal, em sessão de 24 de Março de 2015 entende que o Código de Estrada vigente revogou tacitamente aquele Decreto. Ora, Da análise dos autos e da legislação aplicável, torna-se evidente que entre a publicação de um acórdão e do outro (2009 e 2015) não houve alteração legislativa (formal) ao Código Penal, ao Decreto-Lei n.º 5/08, de 29 de Setembro, estando também preenchido este requisito. Assim, face ao exposto, e diante da visível contradição entre as duas decisões da Câmara Criminal deste Tribunal Superior, a questão a apreciar e decidir resume-se em saber se o Código de Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 5/08, de 29 de Setembro, revogou ou não tacitamente o Decreto n.º 231/79, de 26 de Julho (sobre a Disciplina do Trânsito Automóvel). Dito doutro modo, aos crimes e contravenções cometidos no exercício da condução automóvel é aplicável o Decreto n.º 231/79 ou o Código de Estrada vigente? Analisemos. A 1.ª Secção da Câmara Criminal no acórdão do Processo n.º 7789, entende que a infracção pela condução de veículo sem se estar legalmente habilitado, é sancionada pelos artigos 23.º e 24.º, ambos do Decreto n.º 231/79, de 26 de Julho. Na sua fundamentação o referido acórdão, refere ainda que «a ideia de que a condução ilegal foi descriminalizada pelo actual Código de Estrada não tem, pois, a nosso ver, qualquer fundamento legal que a sustente.» Por sua vez, no Acórdão n.º 14795, a mesma Secção da Câmara Criminal em sessão de 24 de Março de 2015, entende que o Código de Estrada vigente revogou tacitamente aquele Decreto. Qual das decisões deve prevalecer? Vejamos. É nosso entendimento que, para uma melhor compreensão da questão em análise, é importante, primeiro que analisemos o contexto que influenciou ou determinou na aprovação dos diplomas supra referidos, para de seguida podermos estar em condições de se procurar apreciar e concluir pela ratio que o legislador pretendeu e assim concluir em termos lógico-jurídicos se o mesmo se enquadra ou não no actual contexto sócio-cultural. Assim, se atendermos os sete parágrafos que compõem o preâmbulo do Decreto n.º 231/79, de 26 de Julho, facilmente perceberemos que o mesmo foi aprovado numa conjuntura sócio- política especificamente particular ou seja, num contexto político, económico e social bastante diferente do que vivemos agora. Tanto é assim, que se olharmos para o § 4.º do preâmbulo do Decreto referido um dos argumentos para a sua aprovação é o de que «... não se deve descurar a consciencialização dos condutores e o aumento do seu sentido das responsabilidades, especialmente dos que transitam com viaturas pertencentes ao nosso povo, e simultaneamente intensificar-se a sua preparação técnica, importa aplicar com rigor medidas de carácter criminal, nomeadamente penas de prisão e apreensão de licenças de condução, dissuasoras da irresponsabilidade e da imprudência, outras de carácter civil que permitam principalmente a reintegração do património do Estado e de empresas a que esteja ligado, lesado pelos acidentes culposos (....)» «negrita do nosso». No mesmo espírito, no § 5.º refere o seguinte: «Porque não é possível proceder-se ainda a uma revisão ou substituição do Código da Estrada, entendeu-se conveniente regular por lei avulsa toda esta matéria, sem prejuízo das disposições gerais daquele código, que ainda mantém actualidade. Por outro lado, sendo conveniente evitar a dispersão de legislação sobre a mesma matéria, integram-se no presente diploma, revistas à luz dos novos condicionalismos, algumas das disposições do Decreto-Lei n.º 1-A/75 primeira lei ordinária da República Popular de Angola». Ora, da análise destes dois parágrafos torna-se evidente que atendendo ao contexto em que o diploma foi aprovado, numa altura em que a República de Angola fundava-se num sistema político socialista e de economia planificada, é fácil perceber por um lado, a necessidade de se aplicar com rigor medidas de carácter criminal, penas de prisão e apreensão de licenças, que visava, especialmente aumentar o sentido de responsabilidade dos condutores que transitavam com viaturas do nosso povo por pertencerem ao Estado (povo). Por outro lado, aquele diploma foi aprovado com um carácter de urgência, porquanto não era, à data, possível proceder-se a uma revisão ou substituição do Código de Estrada, daí que se entendeu conveniente regular, por lei avulsa, toda a matéria de disciplina de trânsito, pois era conveniente evitar a dispersão de legislação sobre a mesma matéria.
- Refira-se que, além desse carácter urgente, a aprovação do diploma em questão levou também em conta, e em grande medida, a negligência e inconsideração dos condutores, que infringiam com maior leviandade as normas legais e de prudência que regem a condução automóvel (§ 2.º do citado diploma). Destarte, só se procedeu à substituição do Código de Estrada que vigorou até depois da Independência, o qual remontava ao ano de 1954, em 29 de Setembro de 2008, 54 anos depois, mediante a aprovação do Decreto-Lei n.º 5/08. O preâmbulo desse Decreto-Lei justifica a sua aprovação referindo que «as profundas alterações verificadas no País, quer ao nível político, social e económico, em geral, quer também em particular, ao nível do trânsito e em reflexão da evolução da própria indústria automóvel, tornaram o Código de Estrada de 1954 e os seus regulamentos desajustados da realidade actual».
- Salienta-se ainda naquele preâmbulo que, em face da realidade actual urge «a necessidade de se proceder a uma revisão profunda da (matéria) existente, por forma a introduzir as inovações e actualizações pertinentes, bem como integrar num mesmo quadro a legislação avulsa». Ora da análise dos preâmbulos dos dois diplomas conclui-se o seguinte:
- O primeiro, Decreto n.º 231/79, de 26 de Julho, não visou substituir ou rever o Código de Estrada então vigente assim como, defendia em bom rigor, valores e interesses alicerçados na ideologia política e económica do momento, ou seja, veio regular em lei avulsa determinadas matérias relacionada com a disciplina do trânsito de automóveis.
- O segundo, Decreto-Lei n.º 5/08, de 29 de Setembro, como vimos, em função da alteração da situação política, económica, social e industrial visou, essencialmente, revogar (substituir) o Código de Estrada de 1954 e o seus regulamentos desajustados da realidade actual, bem assim, introduzir as inovações e actualizações pertinentes, bem como integrar num mesmo quadro a legislação avulsa.
- O actual Código de Estrada no seu artigo 2.º dispõe o seguinte: «É revogado o Código de Estrada aprovado pelo Decreto-Lei n.º 39 672, de 20 de Maio de 1954, o Decreto-Lei n.º 152/75, de 31 de Outubro, o Decreto Executivo n.º 77/04, de 23 de Julho, bem como toda a legislação que contrarie o disposto no Código de Estrada aprovado pelo presente Decreto-Lei (negrita do e sublinhado nosso).
- Como se constata, não há aqui nesta norma revogatória uma referência expressa ao Decreto n.º 231/79, porém, na parte final do artigo 2.º do Código de Estrada vigente, o legislador pretendeu estender o sentido e alcance desta norma a toda a legislação que contrarie o disposto no Código de Estrada aprovado pelo presente Decreto-Lei». Posto isto, impõem-se levantar mais uma questão, a de saber se o Decreto n.º 231/79, se enquadra ou não numa das legislações que, eventualmente contrarie o disposto no Código de Estrada vigente? Começamos por referir, sobre a disciplina do trânsito automóvel, não obstante a sua designação, em bom rigor, mais do que tão somente disciplinar, veio sobretudo criminalizar determinadas condutas ou infracções ao trânsito automóvel. Por outro lado, o artigo 23.º deste Decreto estabelece o seguinte: «n.º 1. Todo aquele que for encontrado a conduzir um veículo sem que para tal esteja legalmente habilitado, será condenado na pena de prisão de um a seis meses e a multa de cinco mil kwanzas. n.º 2. Em caso de reincidência, a pena de prisão será de três meses a um ano e a multa de dez mil Kwanzas». Outrossim, 29 anos após a aprovação deste Decreto, o Legislador angolano, aprovou o Decreto- Lei n.º 5/08, de 29 de Setembro «Código de Estrada» que sobre a mesma matéria, (condução de veículo, sem que para tal esteja legalmente autorizado) veio estabelecer precisamente o seguinte:
Artigo 119.º n.º 1 «Só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito». O artigo 120.º do referido Decreto-Lei, dispõe que «O documento que titula a habilitação para conduzir automóvel e motociclos designa-se carta de condução e consta do modelo aprovado pelo Decreto n.º 69/02, de 1 de Novembro». Dispõe o artigo 121.º do Decreto-Lei mencionado, que a carta de condução habilita a conduzir uma ou mais categoria de veículos. Quanto a infracção ou violação da norma supra-referida (condução de veículo sem estar legalmente habilitada) o n.º 2 do artigo 177.º do Código prescreve o seguinte: «A infracção ao disposto no artigo 121.º relativamente à condução de veículos sem estar devidamente habilitado é sancionada com multa de 84 a 420 UCF, se sanção mais grave não estiver prevista para a infracção aplicada». Respondendo à questão acima colocada, numa análise apriorística, com a expressão «se sanção mais grave não estiver prevista para a infracção aplicada», fica-se com a ideia de que, a referência feita na última parte do artigo supracitado é uma justificação segundo a qual, o Código de Estrada vigente, não revogou o Decreto n.º 231/79, ou seja, esta não é uma daquelas legislações que tacitamente o artigo 2.º do Código de Estrada revogou por estar em contradição com o mesmo. Ora. Em nosso entender, e na esteira da jurisprudência firmada pelo Acórdão do Processo n.º 402- C/2013, «em recurso ordinário de inconstitucionalidade» do Tribunal Constitucional da República de Angola, em sessão plenária de 24 de Junho de 2014, com a expressão «se sanção mais grave não estiver prevista para a infracção aplicada», feita na última parte do n.º 2 do artigo 177.º do Código de Estrada, o Legislador foi infeliz, ou seja, utilizou uma formulação imperfeita em matéria de boa técnica legislativa, pois à luz do espírito do sistema jurídico constitucional e penal vigente no nosso Ordenamento Jurídico há uma clara contradição entre o actual Código de Estrada e o tão mencionado Decreto n.º 231/79. Senão vejamos:
O actual Código de Estrada no seu artigo 2.º dispõe que revogou tacitamente toda a legislação que o contrarie e quanto a condução de veículo sem a habilitação legal, o n.º 2 do artigo 177.º do Código prescreve o seguinte: «A infracção ao disposto no artigo 121.º relativamente à condução de veículos sem estar devidamente habilitado é sancionada com multa de 84 a 420 UCF, se sanção mais grave não estiver prevista para a infracção aplicada». Contrariamente, o artigo 23.º Decreto n.º 231/79, estabelece o seguinte: «n.º 1. Todo aquele que for encontrado a conduzir um veículo sem que para tal esteja legalmente habilitado, será condenado na pena de prisão de um a seis meses e a multa de cinco mil Kwanzas». Está aqui, claramente evidenciada uma contradição ao Código de Estrada pois, sobre a mesma matéria um outro diploma, inclusive de hierarquia inferior, dá tratamento diferenciado à questão. Além do mais, o artigo 132.º do Código de Estrada estabelece que «os crimes e as contravenções cometidas no exercício da condução automóvel são punidos nos termos da Legislação Penal e do presente Código, com as modificações constantes neste capítulo». De acordo com a interpretação deste artigo, a priori se parece pacífico que apenas se pretende aplicar as suas disposições em caso de punição do agente que conduza veículos automóveis sem que para tal esteja legalmente habilitado, porém, já não é pacífica a aplicação daquele outro Decreto, pelo facto de no plano da hierarquia dos Diplomas Legais ser inferior, anterior ao Código de Estrada e por disciplinar a mesma matéria. Destarte, sendo este Decreto n.º 231/79 uma norma essencialmente incriminadora, é indispensável a sua subordinação aos princípios que norteiam a aplicação das normas penas incriminadoras, bem assim, o primado da Constituição. Em face disto questiona-se quais dos diplomas deve ser aplicado. Reza o artigo 1.º do nosso Código Penal que «crime ou delito é o facto voluntário declarado punível pela Lei Penal». Já o artigo 5.º do mesmo diploma consagra o princípio da «nullum crimen sine lege» e dispõe que «nenhum facto, ou consista em acção ou em omissão, pode julgar-se criminoso, sem que uma lei anterior o qualifique como tal. Assim, existindo facto qualificado como crime deve ser sancionado nos termos das normas e princípios supra-referidos, todavia, a aplicação das leis penais e quaisquer outras devem estar sempre subordinadas ao princípio da supremacia da Constituição e legalidade e demais princípios. Este princípio está consagrado no artigo 6.º da Constituição da República de Angola (doravante CRA), e estabelece o seguinte: «1. A Constituição é a lei suprema da República de Angola. 2. O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade, devendo respeitar e fazer respeitar as leis. 3. As leis, os tratados e os demais actos do Estado, dos órgãos do poder local e dos entes públicos em geral só são válidos se forem conformes à Constituição.» Sublinhado e negrita do nosso). Atendendo ao princípio referido acima, o artigo 65.º da CRA, no tocante a aplicação da lei criminal impõe o seguinte: «ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais grave do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.» Assim, mais do que discutirmos se houve ou não uma revogação tácita do Decreto n.º 231/79, mormente o seu artigo 23.º e seguintes, pelo Código de Estrada vigente, embora defendamos e entendamos ter ocorrido, o certo é que, actualmente, a aplicação de qualquer outra norma, sem ser o Código de Estrada, em matéria de condução automóvel sem habilitação legal é uma clara violação aos artigos 6.º e 65.º da CRA. Assim, em homenagem ao princípio da aplicação da lei mais favorável, princípio estruturante em matéria penal, não se afigura conforme a constituição a aplicação do Decreto n.º 231/79, de 26 de Julho. Outrossim, de acordo com Professora Luzia Sebastião «um dos princípios estruturantes do Direito Penal é Princípio da Necessidade ou da Intervenção Mínima, segundo o qual, só se deve querer aplicar, as normas do direito penal, quando, por um lado, for necessário e, por outro, eficaz». O que segundo a Professora, significa que, sempre que houver outras áreas, mesmo de natureza meramente social, estas devem ser as primeiras a intervir para resolver as questões que se levantem nas relações que as pessoas estabelecem no seu dia a dia (Luzia Sebastião in «O quadro jurídico sobre a violência doméstica em Angola» a margem do Seminário Internacional de Direitos Humanos, na Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto págs. 1 e 2). In casu, havendo para a mesma situação duas sanções diferentes desencadeia-se uma situação que põe em causa um outro princípio estruturante da ciência jurídica designadamente, o princípio da confiança. Em homenagem a este princípio, o Professor Gomes Canotilho entende que «o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente a sua vida» (vid. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, pág. 257). Assim, Reis Novais, «a protecção da confiança dos cidadãos relativamente à acção dos órgãos do Estado é um elemento essencial, não apenas da segurança da ordem jurídica, mas também da própria estruturação do relacionamento entre Estado e cidadãos em Estado de direito. Sem a possibilidade, juridicamente garantida, de poder calcular e prever os possíveis desenvolvimentos da actuação dos poderes públicos susceptíveis de se reflectirem na sua esfera jurídica, o indivíduo converter-se-ia, com violação do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, em mero objecto do acontecer estatal» (vid. Jorge Reis Novais, As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, pág. 816). Os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança assumem-se como princípios classificadores do Estado de Direito Democrático, e que implicam um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, (vide acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de Portugal, no Processo n.º 0164a/04, de 13 de 11. 2007» Relator: Bento São Pedro «i.n www.dgsi.pt/jsta.nsf). Assim, é hoje absolutamente inegável, que o princípio do Estado de Direito concretiza-se através de elementos retirados de outros princípios, dentre eles, o da segurança jurídica e o da protecção da confiança dos cidadãos. O princípio do Estado de Direito encontra-se expressamente consagrado no artigo 2.º da CRA, e deve ser entendido como um princípio politicamente conformado que explicita as valorações fundamentadas do legislador constituinte. Ademais, à luz do actual espírito do Sistema Penal Angolano não há qualquer tendência que advoga no sentido da vigência do Decreto n.º 231/79, de 26 de Julho, tanto é assim que de iure constituendo o Projecto da Lei para aprovação do futuro Código de Processo Penal vem no seu artigo 3.º acabar com a discussão da revogação expressa ou tácita do Decreto mencionado ao estabelecer o seguinte:
Artigo 3.º
- (...)
- «É revogada toda a legislação que contrarie o presente Diploma, nomeadamente:
- n)- Decreto n.º 231/79, de 26 de Julho, que estabelece regras especiais de processo para as infracções cometidas no domínio da condução automóvel». Logo, estamos diante de mais uma evidência de que, a matéria relacionada às infracções no domínio da condução de automóvel, sem a necessária habilitação legal é uma matéria que o Legislador entende estar reservada ao Código de Estrada. Em conclusão: Reiteramos em absoluto a nossa concordância com a já referida jurisprudência firmada pelo Acórdão do Processo n.º 402-C/2013, do Tribunal Constitucional da República de Angola, ao concluir que as normas do Decreto n.º 231/79, de 26 de Julho, referentes aos crimes e contravenções cometidos no exercício da condução automóvel estão tacitamente revogadas pelas normas sobre a matéria constantes no Decreto-Lei n.º 5/08, de 29 de Setembro, «Código de Estrada» como se estabelece no seu artigo 2.º sendo, segundo tal jurisprudência, inconstitucional a sua aplicação. Entre os dois diplomas deve prevalecer este último sob pena de estarmos a advogar a favor da quebra da certeza e segurança jurídica, ou da confiança porquanto, a aplicação do Decreto n.º 231/79, resulta em contradição, violação de princípios e normas constitucionais e de direito penal.
Pelo que, configurando-se o caso em apreço numa efectiva hipótese da previsão normativa constante do artigo 763.º do C.P.C, ex-vi n.º 2 do artigo 52.º da Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro, somos pela produção de um assento, consubstanciado num acórdão de uniformização da jurisprudência apreciada nos presentes autos.
- VII. Decisão Nestes termos e fundamentos, acordam em Plenário os Juízes deste Tribunal em decidir o conflito de jurisprudência mediante a seguinte resolução: As normas do Decreto n.º 231/79, de 26 de Julho, referentes aos crimes e contravenções cometidos no exercício da condução automóvel estão tacitamente revogadas pelas normas sobre a matéria constante do Decreto n.º 5/08, de 29 de Setembro, que aprova o Código de Estrada.
- Publique-se. Luanda, aos 23 de Julho de 2018. Assinaturas: Joaquina do Nascimento - Relatora, Lisete Silva, Martinho Nunes, Teresa Marçal, Miguel Correia, Daniel Modesto, Norberto Capeça, Aurélio Simba, João Fuantoni, Anabela Vidinhas, Rui Ferreira, Cristino Molares, Domingos Mesquita, Efigênia Lima e Agostinho Santos. Está conforme. Luanda, 25 de Julho de 2018. O Juiz Conselheiro Presidente, Rui Ferreira.
Para descarregar o PDF do diploma oficial clique aqui.