Pular para o conteúdo principal

Lei n.º 30/22 de 29 de agosto

Detalhes
  • Diploma: Lei n.º 30/22 de 29 de agosto
  • Entidade Legisladora: Assembleia Nacional
  • Publicação: Diário da República Iª Série n.º 163 de 29 de Agosto de 2022 (Pág. 6214)

Assunto

Sobre o Regime Jurídico da Responsabilidade do Estado e de outras Pessoas Colectivas Públicas.

Conteúdo do Diploma

A responsabilidade dos poderes públicos, independentemente da natureza da função que exercem, é um princípio estruturante de um Estado Democrático de Direito e, ao mesmo tempo, um direito fundamental dos cidadãos. O facto de, como direito fundamental, beneficiar do regime de aplicabilidade directa não prejudica, antes impõe ao legislador o dever de legislar sobre a matéria, quer por imperativos de segurança jurídica e igualdade, quer para evitar eventuais violações do princípio da separação de poderes e interdependência de funções. Daí ser necessário o legislador concretizar o regime de responsabilidade e é, no exercício desse dever, que a presente Lei visa, por um lado, desenvolver o princípio geral de responsabilidade patrimonial dos poderes públicos e, por outro, o regime substantivo e processual, nos termos do artigo 75.º da Constituição da República de Angola. A Assembleia Nacional aprova, por mandato do povo, nos termos do n.º 2 do artigo 165.º e da alínea d) do n.º 2 do artigo 166.º, ambos da Constituição da República de Angola, a seguinte:

LEI SOBRE O REGIME JURÍDICO DA RESPONSABILIDADE DO ESTADO E DE OUTRAS PESSOAS COLECTIVAS PÚBLICAS

CAPÍTULO I DISPOSIÇÕES GERAIS

Artigo 1.º (Âmbito)

  1. A responsabilidade extracontratual dos poderes públicos por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa rege-se pelo disposto na presente Lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial.
  2. Para efeitos do disposto no número anterior, correspondem ao exercício da função administrativa as acções e omissões que, independentemente da natureza do sujeito em causa a quem sejam imputadas, tenham ocorrido ao abrigo de normas de direito administrativo.
  3. Sem prejuízo do disposto em lei especial, a presente Lei regula a responsabilidade pessoal dos titulares de órgãos da administração, funcionários públicos, agentes administrativos e de todos aqueles que exerçam funções subordinadas no contexto das pessoas colectivas públicas por danos decorrentes de acções ou omissões adoptadas no exercício das funções administrativas e por causa desse exercício.
  4. Sem prejuízo do disposto em lei especial, a presente Lei regula, para além da responsabilidade pessoal dos Magistrados Judiciais, a responsabilidade pessoal dos Magistrados do Ministério Público e ainda dos funcionários envolvidos na Administração da Justiça por danos decorrentes de acções ou omissões adoptadas no exercício da função jurisdicional e por causa desse exercício.
  5. As disposições que, na presente Lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas públicas, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade extracontratual de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas que sejam reguladas por normas e princípios de direito administrativo.

Artigo 2.º (Danos especiais e Anormais)

  1. Para efeitos do disposto na presente Lei, consideram-se danos especiais os que incidam sobre uma pessoa ou um grupo, sem afectarem a generalidade das pessoas.
  2. Para efeitos do número anterior, são considerados danos anormais os que, ultrapassando os custos próprios da vida em sociedade, mereçam, pela sua gravidade, a tutela do direito.

Artigo 3.º (Obrigação de Indemnizar)

  1. Quem esteja obrigado a reparar um dano, segundo o disposto na presente Lei, deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
  2. A indemnização é fixada em dinheiro, quando a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para quem tem a obrigação de indemnizar.
  3. A responsabilidade prevista na presente Lei compreende os danos patrimoniais, não patrimoniais, os emergentes e os lucros cessantes, bem como os danos presentes e futuros, nos termos gerais do Direito.

Artigo 4.º (Culpa do Lesado)

Quando o comportamento culposo do lesado tenha concorrido para a produção ou agravamento dos danos causados, designadamente por não ter utilizado a via processual adequada à eliminação do acto jurídico lesivo, cabe ao Tribunal determinar, com base na gravidade da culpa das partes e nas consequências que delas tenham resultado, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.

Artigo 5.º (Prescrição)

O direito à indemnização por responsabilidade extracontratual dos poderes públicos e dos titulares dos respectivos órgãos, funcionários e agentes, bem como o direito de regresso, prescrevem nos termos do artigo 498.º do Código Civil, sendo-lhes aplicável o disposto no mesmo Código em matéria de suspensão e interrupção da prescrição.

Artigo 6.º (Direito de Regresso)

  1. O exercício do direito de regresso, nos casos em que este se encontra previsto na presente Lei, é obrigatório, sem prejuízo do procedimento disciplinar a que haja lugar.
  2. Para efeitos do disposto no número anterior, a Secretaria do Tribunal, em que a pessoa colectiva tenha sido condenada, remete certidão de sentença, logo após o trânsito em julgado à entidade ou às entidades competentes para o exercício do direito de regresso.
  3. Os titulares dos poderes de direcção, de supervisão, de superintendência ou de tutela respondem pela totalidade dos danos provocados pelo não exercício do direito de regresso ou, quando o exerçam de modo insuficiente, no diferencial entre o valor devido e o valor inferior em que foi feita.
  4. Para efeitos do número anterior, têm direito de acção todo e qualquer indivíduo que pertença à comunidade.

CAPÍTULO II RESPONSABILIDADE PÚBLICA POR DANOS DECORRENTES DO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO ADMINISTRATIVA

SECÇÃO I RESPONSABILIDADE POR FACTO ILÍCITO

Artigo 7.º (Responsabilidade Exclusiva do Estado e de outras Pessoas Colectivas Públicas)

  1. O Estado e as pessoas colectivas públicas são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício.
  2. Sem prejuízo do disposto no número anterior, a indemnização com fundamento na culpa leve tem lugar quando existam danos especiais e anormais.
  3. O Estado e as demais pessoas colectivas públicas são ainda responsáveis quando os danos não tenham resultado do comportamento concreto de um titular de órgão, funcionário ou agente determinado, ou não seja possível provar a autoria pessoal da acção ou omissão, mas devam ser atribuídos a um funcionamento anormal do serviço.
  4. Existe funcionamento anormal do serviço quando, atendendo às circunstâncias e aos padrões médios de resultado, fosse razoavelmente exigível ao serviço uma actuação susceptível de evitar os danos produzidos.

Artigo 8.º (Responsabilidade Solidária em caso de Dolo ou Culpa Grave)

  1. Os titulares de órgãos, funcionários e agentes são responsáveis pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas por eles cometidas com dolo ou com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontravam obrigados em razão do cargo.
  2. O Estado e as outras pessoas colectivas públicas são responsáveis de forma solidária com os respectivos titulares de órgãos, funcionários e agentes, se as acções ou omissões referidas no número anterior tiverem sido cometidas por estes no exercício das suas funções e por causa desse exercício.
  3. Para efeitos do número anterior, consideram-se cometidas, no exercício das suas funções e por causa deste exercício, as acções ou omissões de que resultem a violação de norma ocorrida no âmbito de procedimento de formação dos contratos referidos no contencioso pré-contratual do código de processo contencioso administrativo.
  4. Sempre que satisfaçam qualquer indemnização, nos termos do n.º 2 do presente artigo, o Estado e as outras pessoas colectivas públicas gozam do direito de regresso contra os titulares de órgãos, funcionários ou agentes responsáveis, competindo aos titulares de poderes de direcção, de supervisão, de superintendência ou de tutela adoptar as providências necessárias à efectivação daquele direito, sem prejuízo do eventual procedimento disciplinar.

Artigo 9.º (Ilicitude)

  1. Consideram-se ilícitas as acções ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objectivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos.
  2. Existe igualmente ilicitude quando a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos resulte do funcionamento anormal do serviço, segundo o disposto no n.º 4 do artigo 7.º.

Artigo 10.º (Culpa)

  1. A culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes deve ser apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor.
  2. Sem prejuízo da demonstração de dolo ou culpa grave, presume-se a existência de culpa leve na prática de actos jurídicos ilícitos.
  3. Para além dos demais casos previstos na presente Lei, também se presume a existência de culpa sempre que tenha havido incumprimento de deveres de vigilância.
  4. Quando haja pluralidade de responsáveis, é aplicável o disposto no artigo 497.º do Código Civil.

SECÇÃO II RESPONSABILIDADE PELO RISCO

Artigo 11.º (Responsabilidade pelo Risco)

  1. O Estado e outras pessoas colectivas públicas, bem como as pessoas colectivas privadas, no exercício de funções administrativas, respondem pelos danos decorrentes de actividades, coisas ou serviços administrativos especialmente perigosos, salvo quando, nos termos gerais, se prove que houve força maior ou concorrência de culpa do lesado, podendo o Tribunal, neste último caso, tendo em conta todas as circunstâncias, reduzir ou excluir a indemnização.
  2. Quando os lesados forem em tal número que, por razões de interesse público de especial relevo, se justifique a limitação do âmbito da obrigação de indemnizar, esta pode ser fixada equitativamente em montante inferior ao que corresponderia à reparação integral dos danos causados.
  3. Quando um facto culposo de terceiro tenha concorrido para a produção ou agravamento dos danos, o Estado e outras pessoas colectivas públicas respondem solidariamente com o terceiro, sem prejuízo do direito de regresso.

CAPÍTULO III RESPONSABILIDADE PÚBLICA POR DANOS DECORRENTES DO MAU FUNCIONAMENTO DA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA

Artigo 12.º (Regime Geral)

  1. Salvo o disposto nos artigos seguintes, é aplicável aos danos ilicitamente causados pela administração da justiça, designadamente por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável, o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa.
  2. É, ainda, aplicável aos danos causados pela Administração da Justiça o regime de responsabilidade pelo risco e por actos lícitos previstos no presente Lei.
  3. Para efeitos dos números anteriores, Administração da Justiça compreende a actividade dos tribunais, nomeadamente a conduta dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público, das Secretarias Judiciais e do Ministério Público, dos Órgãos de Polícia Criminal, dos médicos forenses, dos privados que auxiliam a Administração da Justiça como peritos nomeados pelo Tribunal, depositários judiciais e intérpretes e, ainda, as condutas danosas resultantes dos julgados de paz, dos tribunais arbitrais públicos e dos sistemas de mediação pública.

Artigo 13.º (Responsabilidade por erro Judiciário)

Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada de liberdade, o Estado é responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais, ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.

Artigo 14.º (Responsabilidade dos Magistrados)

  1. Sem prejuízo da responsabilidade criminal em que possam incorrer, os Magistrados Judiciais e do Ministério Público não podem ser directamente responsabilizados pelos danos decorrentes dos actos que praticam no exercício das respectivas funções, mas quando tenham agido com dolo ou culpa grave, o Estado goza do direito de regresso contra os mesmos.
  2. Nos actos de administração e não jurisdicionais, os Magistrados Judiciais e do Ministério Público ficam sujeitos às regras impostas pela responsabilidade da função administrativa.
  3. O direito de regresso sobre os magistrados é exercido nos termos do artigo 6.º da presente Lei e cabe ao órgão competente para o exercício do poder disciplinar, a título oficioso ou por iniciativa do Ministério Público ou do Órgão Governamental responsável pela Justiça.

CAPÍTULO IV RESPONSABILIDADE PÚBLICA POR DANOS DECORRENTES DO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO LEGISLATIVA

Artigo 15.º (Responsabilidade pelo Exercício da Função Legislativa)

  1. O Estado é responsável pelos danos anormais causados aos direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares por actos que, no exercício da função legislativa, pratiquem, em desconformidade com a Constituição, o direito internacional e acto legislativo de valor reforçado.
  2. O Estado é também responsável pelos danos que, para os direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, resultem da omissão de providências legislativas necessárias para tornar exequíveis normas constitucionais.
  3. A existência e a extensão da responsabilidade prevista nos números anteriores são determinadas atendendo às circunstâncias concretas de cada caso e, designadamente, ao grau de clareza e precisão da norma violada, ao tipo de inconstitucionalidade e ao facto de terem sido adoptadas ou omitidas diligências susceptíveis de evitar a situação de ilicitude.
  4. Quando os lesados forem em tal número que, por razões de interesse público de especial relevo, se justifique a limitação do âmbito da obrigação de indemnizar, esta pode ser fixada equitativamente em montante inferior ao que corresponderia à reparação integral dos danos causados.

CAPÍTULO V RESPONSABILIDADE POR ACTOS LÍCITOS OU INDEMNIZAÇÃO PELO SACRIFÍCIO

Artigo 16.º (Responsabilidade por actos Lícitos e Indemnização pelo Sacrifício)

  1. Sem prejuízo do disposto em legislação especial, o Estado e outras pessoas colectivas públicas são responsáveis perante os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos tenham imposto encargos ou causado prejuízos especiais e anormais, devendo, para o cálculo da indemnização, atender-se, designadamente, ao grau de afectação do conteúdo substancial do direito ou interesse violado ou sacrificado.
  2. Existe a obrigação de indemnizar, nas situações em que o Estado e outras pessoas colectivas públicas, por razões de interesse público ou em estado de necessidade administrativa, sacrificarem, no todo ou em parte, coisa ou direito de terceiro.

CAPÍTULO VI DISPOSIÇÕES FINAIS

Artigo 17.º (Jurisdição Competente)

A responsabilidade do Estado e de outras pessoas colectivas públicas por actos de gestão privada praticados pelos titulares de órgãos, funcionários e agentes públicos, quando agindo nessa qualidade, que tenham causado danos a terceiros, nos termos do artigo 501.º do Código Civil, são resolvidos pelos Órgãos do Contencioso Administrativo.

Artigo 18.º (Regimes Especiais)

  1. O disposto na presente Lei salvaguarda os regimes especiais de responsabilidade pública por danos decorrentes do exercício da função administrativa.
  2. A presente Lei prevalece sobre qualquer remissão legal para o regime de responsabilidade civil extracontratual de direito privado aplicável a pessoas colectivas públicas.

Artigo 19.º (Dúvidas e Omissões)

As dúvidas e as omissões resultantes da interpretação e da aplicação da presente Lei são resolvidas pela Assembleia Nacional.

Artigo 20.º (Entrada em Vigor)

A presente Lei entra em vigor à data da sua publicação. Vista e aprovada pela Assembleia Nacional, em Luanda, aos 23 de Junho de 2022. O Presidente da Assembleia Nacional, Fernando da Piedade Dias dos Santos. Promulgada aos 15 de Agosto de 2022.

  • Publique-se. O Presidente da República, JOÃO MANUEL GONÇALVES LOURENÇO.
Download

Para descarregar o PDF do diploma oficial clique aqui.